quarta-feira, 29 de junho de 2011

Resenha sobre o livro de Slavoj Zizek - Bem Vindo ao Deserto do Real (Boitempo Editorial, 2003) - Resenha publicada no periódico O Olho da História (UFBA) http://oolhodahistoria.org/n15/artigos/elida.pdf


RESENHA: Zizek, Slavoj. Bem Vindo ao Deserto do Real: cinco ensaios sobre o 11 de Setembro e datas relacionadas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. - Coleção Estado de Sítio.


Quando em 23 de setembro de 2001 (poucos dias após os atentados do 11 de Setembro) o Jornal "Folha de São Paulo" publicou um artigo do filósofo esloveno Slavoj Zizek, ainda não se sabia com clareza a que dimensões (coerentes ou especulativas) tais acontecimentos iriam alcançar após dez anos.  Esse fato é, sem dúvida, um marco na História e vai influenciar o atual cenário político internacional. O mundo transformado no grande palco do espetáculo que ora se descortina diante dos nossos perplexos olhos. Cada novo conflito entre as nações beligerantes intencionalmente envolvidas ou não com os acontecimentos (e teorias conspiratórias) que surgem nas mídias em todo o planeta, nos faz acreditar que vivemos em plena Era das incertezas. Mas já se podia observar a vanguarda do pensamento deste autor que em pouco tempo se tornaria um badalado pop star das ciências humanas. O professor do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana e autor de obras como "Eles Não Sabem O que Fazem", "Um Mapa da Ideologia" e "Às portas da revolução: escritos de Lenin de 1917", esteve recentemente no Brasil, pela terceira vez (mais precisamente em maio de 2011) para lançar "Em defesa das causas perdidas" e "Primeiro como Tragédia, depois como farsa" e se apresentar na conferência "Revoluções: Quando a situação é catastrófica, mas não é grave" além de integrar o seminário do Projeto Revoluções: Uma política do sensível (Rio de Janeiro e São Paulo), numa parceria entre o IEAH, PUC-RJ, ClACSO e FLACSO.
            O livro aqui resenhado, está dividido em cinco ensaios do próprio autor: Paixões do Real, paixões do semblante; Reapropriações: A lição do mulá Omar; A felicidade depois do 11 de setembro; De Homo otarius a Homo sacer; De Homo sacer a próximo; além do Prefácio à edição brasileira: Um ano depois; da Introdução: a tinta que falta e da Conclusão: O cheiro do amor e Posfácio: A política do Real de Slavoj Zizek. O título "Bem vindo ao deserto do Real" faz referência à emblemática frase proferida por Morpheus no filme Matrix (1999) ao dar as “boas vindas” a Neo então recém-chegado ao mundo virtual consciente, dentro da matrix. Provavelmente, parafraseando o personagem- líder de uma revolução que se propõe a combater o sistema, Zizek queira, ao mesmo tempo, se colocar como a voz  na consciência a serviço de uma nova forma de revolução e chamar nossa atenção para o choque da “realidade real”.
            Polêmico, teatral, provocativo (“com essa esquerda, quem precisa de direita?”), mas também sensível e humanitário, preocupado com os destinos do pensamento da esquerda marxista-leninista, por vezes criticado pela ampla receptividade entre os intelectuais da mídia “burguesa” e público em geral. E é justamente aí que reside o seu “charme”. Com sua linguagem ora coloquial, ora refinadamente acadêmica consegue “seduzir” o amplo público ávido por teorias globais que expliquem o que está acontecendo no mundo atual.
De qualquer modo, o grande mérito desta obra se deve ao seu lúcido amadurecimento que confere às suas observações um caráter investigativo sobre evidências explícitas nos campos da política, do direito internacional, das sociedades "democráticas liberais" e "fundamentalistas" islâmicas com  tratamento antropológico, e principalmente suas considerações sobre o cinema e no que se refere aos atentados
“terroristas” do 11 de Setembro e suas conseqüências.
            Para o autor, fica claro a posição estadunidense tomada após esses eventos. A América vive sob a perspectiva de um novo ato terrorista, o que lhes dá o direito de se prevenir militarmente de futuros ataques, segundo a "doutrina Bush" e seus aliados, o que justificaria seus incessantes ataques preventivos. O estado em que a América vive atualmente é o da "Guerra ao Terror", embora indefinidamente e convenientemente suspensa sob a sombra da eterna ameaça permanente de uma eminente megacatástrofe. E tudo isso em defesa dos ideais tão caros ao povo americano: liberdade e democracia! Alexis de Tocqueville deve estar se revirando no túmulo.
            Essa foi a ideologia levada ao restante do mundo ocidental: a defesa da felicidade capitalista americana contra o ataque dos estrangeiros islâmicos.
      "O 11 de Setembro veio provar que somos felizes e que os outros invejam a nossa
 felicidade. Seguindo essa lógica, deve-se então arriscar a tese de que, longe de
 arrancar os EUA de seu sono ideológico, o 11 de Setembro foi usado como o
 sedativo que permitiu à ideologia dominante "normalizar-se": o período que se
 seguiu à Guerra do Vietnã foi um longo trauma para a ideologia hegemônica – que
foi obrigada a se defender de dúvidas críticas, os vermes que a roíam continuadamente não podiam ser eliminados, toda volta à inocência era
sentida como uma fraude.. até o dia 11 de Setembro, quando os EUA foram a
vítima, e portanto puderam reafirmar a inocência de sua missão. Em resumo, longe
de acordar os EUA, o 11 de Setembro nos fez dormir outra vez, continuar nosso
sonho depois do pesadelo das últimas décadas. (P. 13)
                A ironia está na constatação da ideologia de hoje: “Americanos, acordem!”, aceita não só pelos norte-americanos, mas por todos nós que acompanhamos o desenrolar dos acontecimentos após o 11 de Setembro. O que Zizek nos mostra são as inversões da realidade. O que é Real, se nos apresenta como uma entidade virtual, ao passo que o inverso, a "realidade virtual" é sentida como a "realidade real" sem no entanto, o ser. É a realidade esvaziada em sua substância. E cita alguns exemplos:
"Hoje encontramos no mercado uma série de produtos desprovidos de suas propriedades malignas: café sem cafeína, creme de leite sem gordura, cerveja sem álcool... e a lista não tem fim: e o que dizer do sexo virtual, o sexo sem sexo; da doutrina de Colin Powell da guerra sem baixas (do nosso lado, é claro), uma guerra sem guerra. (p.25)
            Foi assim que a imagem das Torres Gêmeas sendo atingidas pelos aviões, seguidas de seu desabamento e veiculadas até a exaustão, tornaram-se comparáveis às tomadas de filmes de catástrofes com efeitos espetaculares evidenciando a compulsão americana à repetição como princípio do prazer.
            Interessante observar a informação de que nos dias que se seguiram ao 11 de Setembro, houve grande procura por livros sobre o Islã e a cultura árabe, assim como por traduções em inglês do Alcorão, ficando evidente o nível de desinformação sobre os novos "inimigos de estado" que ainda nos dias atuais continuam desconhecidos em seus preceitos pela grande maioria da população ocidental. Talvez numa possibilidade de dar uma chance de um olhar etnocêntrico, de desenvolver um certo sentimento na ansiedade de se conhecer esse outro, antes tão distante, e agora tão ameaçadoramente próximo.
            Embora o filósofo esloveno recorra com frequência aos filmes hollywoodianos, uma grata constatação por parte dos cientistas em Cinema-História e cinéfilos em geral ( por que não?) para compor a realidade social diante na manipulação do cenário da política internacional, deixa um gosto de algo ainda a ser revelado. Por exemplo, ao tratar dos filmes Matrix e O Show de Truman,o faz numa alusão óbvia do Mito da Caverna, de Platão.  Mas deixa de considerar alguns elementos imagéticos expostos propositalmente pelos diretores de ambos os filmes, que poderiam contribuir na análise dos objetivos ideológicos dessas super produções. O que dizer de elementos maçônicos presentes nesses filmes, popularmente conhecidos, como expressões, vocabulários, gestos, símbolos etc.? Que funções teriam nesses filmes? 
O que Zizek nos revela é que em outubro de 2001 o Pentágono recorreu aos estúdios de Hollywood para que seus autores, diretores e especialistas em filmes de catástrofes teorizassem sobre possíveis cenários de ataques terroristas, o que comprova o caráter do cinema hollywoodiano como “aparelho ideológico do Estado”. Embora o filme “Mera Coincidência” não tenha sido lembrado pelo autor, é um clássico exemplo de seus argumentos. É a ficção que se torna realidade.
Outro aspecto importante a ser observado no livro remete ao discutido Francis Fukuyama e sua  teoria pseudo-hegeliana do "fim da história" que num primeiro momento, aparentemente se opõe à teoria do "choque de civilizações" de Samuel P. Huntington, quando na verdade, segundo Zizek, ambos concordam que o fundamentalismo islâmico representa atualmente a maior ameaça à ordem social capitalista.  A nova forma de tratar de política tende a ser despolitizada, substituída pela
“administração dos negócios públicos” (P. 154).
            Durante o desenvolvimento do livro, são feitas algumas referências ao contemporâneo filósofo italiano Giorgio Agambem, uma vez que ambos completam-se mutuamente em suas ideias, como na concepção do que eles denominam de Homo sacer, originalmente uma figura obscura da lei romana: o sujeito excluído de seus direitos civis, ao passo que sua existência é considerada sagrada, embora em um sentido negativo. Aquele que pode ser morto por qualquer um, porém não pode ser morto em rituais religiosos. Seria o caso, na atualidade, do povo afegão.
            Zizek também sofre influência do pensamento de Lacan para explicar o aspecto temeroso da fantasia  americana ao citar o estágio da "travessia da fantasia" no que se refere ao momento conclusivo do tratamento psicanalítico, sendo a fantasia inconsciente determinante da pulsão de morte, criando uma realidade psíquica imaginária, idiossincrática, mediadora em defesa do sujeito perante a realidade. A "travessia", portanto, consiste na ajuda para se libertar desses muros e viver a "realidade real". Mas isso não é tarefa fácil, uma vez que mergulhamos diariamente no mundo virtualmente construído e retornar à "realidade real" exige a capacidade de discernir o falso do verdadeiro.
            Inúmeras foram as tentativas de governos sucessivos em construir verdades que mais adiante se revelaram falsas. Mentiras com objetivos eleitoreiros e/ou imperialistas. Quem não se lembra do mistério das cartas com antraz? Sobre as falsas acusações de que o ex-ditador do Iraque, Saddam Hussein estaria produzindo armas químicas em seu país? Como saber se o mito anti-semita contido no "falso" Protocolo dos Sábios de Sião não teria fins retaliatórios, e o que seriam as Pedras da Geórgia, monumento preservado pelo governo? O fato é que os Estados Unidos não sabem ou não querem estabelecer sua parcela de responsabilidade quanto aos danos causados às nações do Terceiro Mundo e agora se passam por vítimas! Desperdiçaram uma ótima chance de reconhecer sua parcela de culpa e mergulharam ainda mais no seu profundo sono ideológico.
Sábias foram as palavras ditas pelo líder talibã mulá Muhammad Omar no dia 25 após o 11 de Setembro:  “Vocês aceitam tudo que seu governo diz, sem se perguntar se é verdade ou mentira, vocês não são capazes de pensar por si próprios? Seria melhor que vocês usassem sua própria inteligência e entendimento”. (P.75).
Trata-se de uma guerra onde quem a declara se posiciona como vítima e o “perverso” inimigo dela participa adotando a única forma possível de enfrentamento: a reação do mais fraco em atos terroristas.
  De que lado devemos ficar?  Não seria essa a pergunta à qual procuramos dar uma resposta após uma leitura cuidadosa da obra? Se não a encontramos, acusamo-lo de não passar de um anestésico para a luta de classes ou por não oferecer saídas para os tempos complicados em que nos encontramos.
   A propósito, criar terminologias para delimitar um recorte temporal tem sido uma opção filosófica muito apreciada pelos românticos alemães do século XVIII, quando Johan Grottfried Herder criou o termo em latim Zeitgeist,( o espírito de época) ao escrever uma crítica à obra Genius Seculi (o espírito do século), de Christian Adolph Klotz. Destarte, terminologias como Zeitgeist e genius seculi se somam às do pensamento zizequiano e outros pensadores para nomear o atual momento histórico como nomus da terra, pós-modernismo, Estado de Excessão ou simplesmente Estado de permanente Guerra ao Terror.
   Uma vez estabelecidos os paradigmas do nosso século “democracia liberal” vide EUA-Israel versus “fundamentalismo” vide países islâmicos não alinhados chegamos a um ponto em que nem o capitalismo nem a rejeição muçulmana ao modernismo podem oferecer as soluções para o atual cenário internacional em conflito.
   Obviamente não temos que apoiar um dos dois lados, é o que nos aconselha o filósofo. Ou então corremos o risco de cair na armadilha do impasse niilista multiculturalista e pós-político. Consideremos o âmbito das mídias digitais como um fenômeno a ser explorado, um novo campo de batalha capaz de tornar efetiva uma revolução, digamos, neo-leninista, quem sabe?       


Élida Gomes                         



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